quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Implante Coclear: Contrato de Casamento

Samuel Stanley, amigo e ex-implantado, é o autor dessa crônica criada a partir da ilustração do implante coclear como um casamento. Samuel estava cursando a faculdade de Teatro na UFS (Universidade Federal de Sergipe) quando perdeu a audição em maio de 2011 e acabou por deixar o curso no sexto semestre. Não se sabe o real motivo da sua perda, mas acredita-se que tenha sido por causa de uma meningite bacteriana, o que gerou perda de memória na época e sequelas que perduram até hoje. Nasceu e mora em Alagoinhas, BA, e completará 33 anos no próximo dia 5 de março. Usa AASI (aparelho de amplificação sonora individual) desde dezembro de 2012 no ouvido esquerdo e colocou IC no ouvido direito em 2014. Samuel não pôde dar continuidade ao uso do Implante Coclear mas é totalmente favorável a essa tecnologia. Tem fé que irá avançar cada vez mais e possibilitar outras oportunidades de voltar a ouvir.



IMPLANTE COCLEAR: CONTRATO DE CASAMENTO


CONHECIMENTO: (conhecimento casual)

Como em todo casamento, o que o surdo precisa ter com o IC é o conhecimento dele [Conhecido popularmente como ouvido biônico, o implante coclear é um dispositivo eletrônico que tem o objetivo de substituir as funções das células do ouvido interno de pessoas com surdez profunda, que não são beneficiadas pelo uso de aparelhos auditivos. É um equipamento implantado cirurgicamente na orelha que tem a função de estimular o nervo auditivo e recriar as sensações sonoras. O implante coclear é composto de dois sistemas principais: um externo e um interno. A parte interna é formada por um receptor e um arranjo de eletrodos que fica posicionado dentro da cóclea (órgão da audição com formato de caracol). Eles se conectam a um receptor, que funciona como um decodificador, implantado na região atrás da orelha, por baixo da pele. Com o receptor, ficam uma antena e um ímã, que servem para fixar a unidade externa e captar os sinais elétricos. A unidade interna normalmente funciona por radiofrequência, ou seja, o mesmo meio usado para transmitir informações para a unidade interna é responsável pelo funcionamento dela. A parte externa é composta por um processador de fala, uma antena transmissora e um microfone. Essa é a parte do implante que fica aparente.]
Levando em consideração que esse conhecimento para as crianças é feito pelos pais, o que não deixa de retratar a imagem do casamento de antigamente, no qual os pais eram quem faziam essas escolhas.
Para um adulto, essa escolha pode ser pensada, analisada e até mesmo recusada, mas para as crianças é obrigatória a imposição dos pais, que estão mais interessados na melhoria e qualidade de vida auditiva para seus filhos. Depois de todo conhecimento teórico sobre o IC, por meio de diversas pesquisas, vídeos, informações de amigos e tantos outros meios, é hora de se candidatar para tal.
A escolha do centro ou da equipe que fará esse “casamento” fica a critério do pretendente.
Com todo esse conhecimento adquirido, e se candidatando em um programa de IC, é hora da segunda parte.

TRIAGEM: (aprimoramento do conhecimento e um passo para o amor)

A triagem é o contato mais próximo que o surdo tem para consolidar ou não sua decisão, já que uma série de critérios é avaliada para essa aprovação, além de exames que precisam comprovar a necessidade do implante, pois não basta apenas ser surdo para se beneficiar desse “casamento”, é preciso ser um bom candidato. Na triagem, o surdo passa por várias análises, além de ter um conhecimento sobre o processo cirúrgico. Isso "pode" causar um certo desconforto/receio/medo no candidato ou impulsioná-lo para a cirurgia. Nenhum medo deve estar acima do medo em continuar surdo. A análise psicológica também é de grande importância, pois ela acaba dando uma desacelerada na ansiedade e expectativa.
Depois da triagem, alguns candidatos podem ficar sem dormir, por não verem a hora de serem aprovados, de serem selecionados, desse momento se concretizar, ou ficarem sem dormir por pensar demais se esse é o melhor caminho, se é a coisa certa, sem dormir por pensar, pensar, pensar...
O surdo que teve perda recente parece sempre mais decidido para esse momento, pois o luto dessa perda foi inevitável, mas recusar o chamado para sair desse luto é opcional. Uma caminhada de 300 quilômetros começa com o primeiro passo.
Tudo foi avaliado: você é apto para esse "casamento". Precisa aguardar para que se confirme o dia da cirurgia/"casamento". Um mundo de alegria e vibração desaba sobre você. Você fica tão emocionado que nem se dá conta desse aguardar/esperar. Mas vivenciamos o êxtase do momento, e ele é integral. Você vai pra casa super, mega, extra feliz, mas chega o dia seguinte, ainda tem emoção em estoque, e outro dia, e outro e outro... Essa espera é um mister de sentimento. Cada minuto é uma eternidade para você que se perdeu no tempo da imaginação: Como será? Como vou me sentir? Será que vai dar certo? Na mesma proporção que toda essa ansiedade traz uma grande esperança, vem acompanhando angústia e incerteza: E se não funcionar? E se não der certo? E se eu tiver alguns dos riscos informados na triagem? Sua cabeça se torna o mundo das interrogações entre choros e risos.
Mas a paciência trará a recompensa!

CIRURGIA: (casamento)

Como todo casamento, no dia sempre se sente aquele friozinho na barriga, tensão, nervosismo, emoção, "calma" ou medo.
Como se dá esse processo? [O paciente normalmente é internado na véspera da cirurgia e tem alta um dia depois. Para que os médicos possam inserir o receptor e os eletrodos, é preciso que o paciente raspe uma faixa de cabelo de aproximadamente 3 cm do lado do ouvido em que será colocado o implante coclear. A técnica usada durante a cirurgia pode variar de acordo com o implante, mas é realizada com anestesia geral e dura cerca de 2 horas. Para se chegar ao local onde são posicionados os eletrodos, os cirurgiões precisam realizar um corte de cerca de 4 cm, atrás da orelha, em uma área que fica próxima ao nervo facial.
Além de ser experiente, a equipe deve utilizar um monitor facial para que não haja erro.

Pronto, realizado! Mesmo na inconsciência do candidato, já foi consumado. Ao acordar da cirurgia, você se sente “tranquilo" por tudo ter ocorrido tão bem, e o sucesso dessa sendo comemorado por toda equipe, por terem conectado todos os eletrodos e classificar a cirurgia/casamento como um sucesso.
Mesmo com alguns incômodos por causa da cirurgia, parece que aquela emoção da espera incansável e confiante não acabou. Pelo contrário, a sensação é que você "já vai ouvir" mesmo sem ativação. A ansiedade causa essas coisas.
A saída do hospital é uma garantia de que "esse casamento foi realizado", até porque o implante é composto de uma parte de metal, o que podemos chamar da “famosa aliança".
Sair da cirurgia não é a hora de "curtir o prazer da lua de mel". Pelo contrário, ela é um repouso tenso e uma espera angustiante por um mês, até que esteja completamente recuperado para esse momento, e que momento! A fase de análise psicológica de todo programa de implante deveria ser administrada antes da cirurgia e antes da ativação. Todo processo de conhecimento, triagem, cirurgia não é mais angustiante e "desesperador" que a espera da ativação.
A esperança e emoção são tantas pela chegada desse dia que os cuidados na recuperação são triplicados. Seguro morreu de velho.
Para os mais ansiosos, todo o incômodo pós-cirúrgico é completamente "esquecido", pois a liberdade desse infinito silêncio está chegando ao fim.

ATIVAÇÃO ("lua de mel"?)

[A reação inicial na ativação do implante varia muito para cada paciente, sendo sempre um momento de bastante ansiedade, não só para o paciente e sua família, mas também para todos os profissionais envolvidos. O processador de fala é posicionado atrás da orelha, conectado pela antena imantada à unidade interna e ligada (ativada). Em seguida, alguns testes são realizados em busca da sensação auditiva do paciente e sua reação a esses estímulos.] A ativação pode ser realmente um momento de muito prazer e alegria para uns, mas pode ser também um momento de frustração para outros. Para esse momento, o acompanhamento psicológico seria de extrema ajuda em "casos frustrados" ou até mesmo para evitar a decepção. O mundo de expectativas foi despejado num só dia, e ele pode realmente ser tudo que se esperava ou não, mas ainda não é o fim. Isso pode ser um pequeno impasse que você precisa superar para alcançar uma longa e bela história de amor e dedicação com seu implante.
Sair frustrado ou alegre da ativação não vai anular sua obrigação e compromissos iniciais. É preciso que esse amor pelo seu implante seja conquistado aos poucos. Ninguém entra em um caso de amor amando. Tudo que aconteceu foi uma forte atração e isso você também teve quando concluiu toda essa jornada até chegar aqui. Tudo que precisa agora é de paciência, persistência e uma dedicação. Mesmo que forçadamente, você precisa ter isso tudo nesse primeiro mês, antes do primeiro mapeamento. A jornada será sempre árdua, mas o resultado, sem dúvidas, será prazeroso e de muito amor.
Claro que não é nem um pouco agradável ouvir as pessoas com voz robóticas, os sons que incomodam, tonturas... A prática leva à perfeição! Adaptar-se não é uma tarefa fácil, mas com certeza é o caminho mais amigável para esse relacionamento.

MAPEAMENTO (convivência, relacionamento, respeito, cuidado... até que a morte ou a remoção os separe)

[Assim, depois desse primeiro mês, ocorrerá o primeiro mapeamento. Depois os mapeamentos passam para uma rotina bimestral, trimestral, semestral... até que se tornem um acompanhamento anual. O objetivo dos mapeamentos é ajustar os sons de maneira que fiquem cada vez mais claros, fortes e nítidos, sem provocar qualquer tipo de desconforto.
Ao mesmo tempo, se iniciará o treinamento auditivo que tem como principal objetivo realizar estimulação auditiva para que se desenvolva de forma satisfatória a comunicação expressiva e receptiva.]

Então você começa a perceber a recompensa da sua paciência. Seu relacionamento está cada dia mais amoroso. Você começa a ver que valeu a pena, melhor, que valeu a “galinha inteira”. Pode-se dizer que cada mapeamento são as bodas do casamento. Cada vez melhor, cada dia amando e se deliciando com esse prazer em ouvir, que outrora era um isolamento ao silêncio, ao luto da perda, da deficiência e tudo parece ter se transformado em dupla honra...
Mas chegou a "crise dos 7 anos". O que seria ela? Defeito no processador, acessórios extremamente caros... O cuidado houve, mas não houve um investimento e preparo para essas horas. Mas ainda há esperança. Por isso, o implante requer um planejamento como qualquer casamento. Os "filhos" são as despesas com acessórios, manutenções, cuidados durante toda vida ou até que a morte/remoção os separe.

Referências usadas:

http://www.direitodeouvir.com.br/implante-coclear/

http://portalotorrinolaringologia.com.br/Ativa%C3%A7%C3%A3o-e-mapeamento.php

Agradecimentos ao nosso amigo Netinho pela sua dedicação em criar a arte surpresa sobre o tema; ao meu marido Paulo, pela revisão do texto e ao Samuel, pela participação especial! Deus os abençoe!